terça-feira, 10 de agosto de 2010

A vida é tão desprevenida e exata, que um dia acaba


Para Karl Gustav Jung, cujo um dos maiores fãs anapolinos é o médico endocrinologista Jorge Cecílio Daher, o homem morre frustrado, irremediável e irrefutavelmente falido em suas esperanças com a vida. Tudo porque, segundo Jung, não conseguimos nunca viver a vida que gostaríamos de ter vivido. Faz sentido. Muito, aliás. Muitos são os pensadores, filósofos, poetas e bêbados ilustres por aí que, no ocaso da vida, repetiram que se pudessem não viveriam com tanta prudência, com tanta delicadeza e até mesmo com medo da vida. Borges, o poeta argentino, escreveu sob esta perspectiva em “Instantes”. Vale a transcrição:
Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico, correria mais riscos, viajaria mais. Contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

A conclusão que o argentino chega ao final de “Instantes” é: “Mas vejam, tenho 85 anos e sei que estou morrendo”. O arremedo não é outro senão a da frustração. Deixando de lado os poetas importados, Manoel Bandeira, que viveu a vida inteira achando que morreria na semana seguinte e ultrapassou a incrível (até mesmo para os padrões de hoje) marca dos 80 anos, também vaticinava acerca da “vida que poderia ter sido e não foi”, como em Estrela da Vida Inteira.
Falar é fácil demais, uma beleza. E eu, quase sempre dando muita vazão ao lado subjetivo da vida (quer coisa mais subjetiva que poesia?), às vezes me pego pensando na utilidade da poesia para a existência material e prática. Falar de amor, de existência ou morte é quase sempre um exercício que perde seu sentido à medida que o tempo pode ser utilizado para trabalhar, ganhar e gastar dinheiro, ou mesmo ter prazeres dos mais belos e terrenos. Para que serve tanta poesia? Ou, ainda, como deixar todos os compromissos, o relógio que nos prende e nos acorda cedo, para viver a vida que poderia ter sido, com direito a ter um perfil quase hippie ou ermitão, com tardes descalças, nados no rio, viagens e outros delírios de Jorge Luiz Borges?
O homem é só frustração a partir do momento em que só descobre o que realmente poderia querer quando não há mais tempo para se realizar. E para descobrir isto não é preciso atingir o final da vida. Reflita você, agora, em quantas situações não se arrependeu de não ter dito ou feito algo bem no instante seguinte em que já se tornou impossível fazer ou falar aquilo. A morte é mestra na coroação deste momento. Quando se perde alguém o primeiro pensamento que surge é o que deveria ter-se feito ou falado se tempo houvesse para tanto. “Eu deveria ter dito aquilo”. “Por que eu não fiz isto?”. Todos recorrentes.
O homem é vítima do próprio arrependimento que ele se permite inserir e viver dele e nele.
Uma das grandes esfinges de mistério que o ‘além-vida’ pode proporcionar – e se isto for verdade, o ato de morrer já vale à pena por matar a curiosidade – será saber porque o homem moderno só vive baseado em ação e pouco, pouquíssimo, em reflexão. Este perfil característico é o cerne de todo o arrependimento. Por que tanto trabalho ou dinheiro? O que mais seduz, o conceito de felicidade ou o conceito de poder? Quando estes dois se misturam e quando a necessidade de ter os dois pode ser conflitante?
E em que paradoxo vivemos que não podemos então parar para admirar e ver a vida, esta vida do amor de pais e filhos, dos amores naturais e profundos, porque temos que correr e correr, sem parar? Se tudo é por alguém ou por um amor que é incondicional e perfeito demais, por que não viver mais este amor e deixar com que as coisas sigam um caminho menos duro, hostil e que consome nosso tempo, vida e saúde?
Penso em mim e penso na diversidade de amigos e conhecidos que tenho e do que conheço da vida de cada um. Todos, de uma maneira pouco diferenciada, caminhamos numa mesma direção rumo à passagem pela vida. A existência com maior ou menor êxito de cada um sempre ocorre da mesma forma. Todos querem a mesma coisa. Uns conseguem muito, outros pouco, mas o mundo tornou a necessidade humana quase idêntica. E então, robotiza-se a existência. Para no final de tudo, descobrir-se que pouco ou até mesmo nada valeu a pena.
E aí vem uma espécie de arrependimento “pré-mortem”.
O poeta e pensador urbano Agenor Miranda de Araújo Neto, certa feita, questionou: “Pra que sonhar? A vida é tão desconhecida e mágica que às vezes dorme ao seu lado calada. Para que buscar o paraíso se até o poeta fecha o livro?”. E ao fim de “Ritual”, a conclusão fatalista – e sob certo prisma – um tanto quanto real: “Ao Deus que ensina a prazo ao mais esperto e ao mais otário. O amor na prática é sempre ao contrário. Pra que chorar: a vida é tão desprevenida e exata que um dia acaba”.
Deus ensina a prazo? Por que demoramos tanto para entender que nossa vida, cedo ou tarde, vai desaguar no arrependimento? Michelangelo Buonarroti concluiu sua vida com uma lamentação egocêntrica de quem tinha a certeza de que merecia viver pelo menos mais outra vida: “Vou morrer logo agora que estou no começo do entendimento de tudo que é a vida”.
Fica fácil colocar no transcendente a culpa por nossas inquietações. Mas além da crença do Deus, no divino e perfeito, no transcendente, é imprescindível crer na própria capacidade de fazer diferença e realizar na própria vida uma forma de minimizar este efeito senil do arrependimento de ter querido fazer mais e não ser mais possível. É bem provável que este sentimento de “deveria ter feito mais isto e menos aquilo”, como está em “Instantes” de Jorge Luiz Borges, também só exista como uma seqüela de que a vida está se esvaindo.
Como Deus em certos temas, efetivamente, ensina a prazo e que somente com o tempo de existência (e espera-se com o tempo além-vida) se aprendem certos conceitos sobre a vida, uma coisa é certa: é preciso refletir mais, talvez na mesma velocidade em que se sente vontade de agir. Porque somente com a reflexão no que se quer viver pode-se minimizar a chance de lá à frente perder-se no lago turno e de águas paradas do arrependimento.
A vida inteira que poderia ter sido e não foi.
Que façamos sê-la, que usemos a chance única que é a existência terrena a fim de melhor aproveitarmos estes instantes.
“É preciso viver, não apenas existir”. Não há mais nada a dizer que Plutarco, autor desta derradeira citação, não tenha dito. Vamos nos permitir.

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