segunda-feira, 12 de abril de 2010

Sobre meus pés cansados

Bem atrás do encontro da Avenida Engenheiro Portela com a Brasil Sul há uma rua escondida. Bem escondida. Tão escondida que nem parece com a Anápolis que se conhece hoje, agitada, movimentada. Não se assemelha nem mesmo com a Anápolis que está uma rua acima, bem ali, no encontro da Engenheiro Portela com a Brasil Sul. Na rua se divisa claramente dois momentos de uma cidade que, no tempo, é possível contar meio século ou mais. De um lado, construções, casas, coisas comuns de quaisquer duas da região central. Mas do outro há terrenos grandes, com edificações rústicas e distantes. Do lado esquerdo de quem a sobe, a vida. Do direito, o delírio do túnel do tempo.
Escondida nesta rua há – mais escondida ainda – uma igreja. A igreja sintetiza os elementos curiosos desta via. É antiga, colonial, como se tirada de Ouro-Preto, Pirenópolis, Cidade de Goiás. Mas não é a Ouro Preto dos shows e movimentações turísticas, nem a Pirenópolis dos carnavais dos brasilienses. É do bucolismo só visto nos livros. O tempo suspende a respiração e os motores deixam de passar marchas nervosas para não fazerem barulho. Desconfio que, ainda que o fizessem, o som misteriosamente não chegaria lá.
A igreja bicentenária tem pouco mais de um ano e meio de construída e o luxo de sua edificação está na paupérrima simplicidade com que foi concebida. É até impensável que nos dias de hoje, de igrejas suntuosas, cujo sistema de ar condicionado central é o preço de alguns carros populares, aquela igrejinha simples se impõe, magnânima, em direção ao nada. Isto, ao nada. Ninguém a vê. Ninguém sabe que ela está lá.
Não sou católico. Não sou nem mesmo batizado em qualquer religião. E não admito que professem ignorâncias a respeito disto. Mas naquela igreja, a missa é rezada em latim. A mim, parecia fascinante. Sem que qualquer pessoa do meu convívio soubesse, lá fui ter naquela igreja. Por alguns domingos, às seis horas, lá estava eu tentando aprender os ritos de sobe, desce, ajoelha, repete. Nunca aprendi. Não deu tempo porque faltou empenho, confesso. Eu não estava lá para ser católico. Eu não precisava de conversão ou mesmo de perdão. Eu estava lá pela serenidade da paz que somente quem professa a fé possui. E crer é sentir. Crer é soltar o corpo e libertar a mente. E eu via aquelas pessoas dedicando-se àquilo. E aquilo me fez bem.

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Em 2007, em uma das entrevistas que fiz para o meu programa na extinta TV Comunitária de Anápolis, recebi o bispo Dom Manoel Pestana. Era uma conversa para 30 minutos. Mas, admirado com tamanha profundidade de comentários, decidi estender, estender e conversei com ele por duas horas. Abusando de sua paciência e conhecimento para aquilo cuja própria vida foi dedicada, o indaguei: O que é Deus? E lá foi ele explicar, na filosofia da cristandade o que aquilo, o Deus, era, é. O que é fé? – redargüi novamente. E ele me contou uma belíssima história sobre o homem com fé que, na hora da morte iminente, pediu por seu Deus e seus protetores. Nunca a esqueci e conto a todos, emocionado que fico, a mesma história.
Para o mesmo programa, entrevistei e conversei muito com o pastor José Clarimundo Cesar, da Assembléia de Deus. Provoquei, busquei, tentei encontrar nele a figura do ‘crente’. Não encontrei. Foi ponderado, intelectualizado, ligado à razão. Ele não se lembra, e nem eu o revelei, mas foi em sua igreja o meu primeiro contato religioso quando em Anápolis cheguei. Conheci pessoas com quem tenho contato até hoje. Guardo boas e más recordações. Lembro-me do pastor Edelto, já falecido, da Primeira Igreja Batista de Petrópolis, local onde tive minhas primeiras impressões sobre religião. Lembro da doçura das suas ponderações. Da forma como lidava com a religião, sem nunca colocá-la como um cabo de chicote.
Minhas conversas sobre política e religião com o pastor Victor Hugo Queiroz com quem tive rápido contato, mas que, em mim, deixou marcas curiosas. Homem de racionalidade. Religião é, sim, um exercício de fé, mas é uma escolha racional. Escolhe-se o que encontrar nesta busca por respostas.
Recordo do pastor Leordino Lopes, hoje presidente do Conselho de Pastores de Anápolis, a quem entrevistei tantas vezes. E que na tarde da última quinta-feira fui ter novamente para tentar encontrar explicação para a bestialidade cometida na UniEvangélica. Conversei como ele por dois momentos. Ele precisou tomar conhecimento do ocorrido, através do reitor do centro universitário, pois ele mesmo não quis crer no relato que foi manchete deste jornal há uma semana. Compreensível.
No retorno da ligação, o sempre carinhoso Leordino me explicou que não conseguira conversar com Carlos Mendes, o reitor. Mas reiterou a mesma fala que me disse na primeira ligação e que, por opção pessoal não haverei de transcrever para que isto não gere incomodo a ele, como se este material tivesse por objetivo colocar a instituição e seu reitor em linha de tiro com o presidente do Conselho de Pastores de Anápolis. Não tem.
O que me chamou mais a atenção na fala do amigo Leordino não foi o seu conteúdo, mas a preocupação, a consternação de um religioso em torno da tristeza do ocorrido. Ele ficou repetindo seu lamento por diversas vezes num tom grave de quem sentiu a imbecilidade do ato. E excetuou por cautela e precaução o seu autor, e eu aqui também o faço: eu e ele, ali naquela ligação, percebemos que mais grave no episódio vivenciado por uma artista na UniEvangelica, não era o mensageiro, mas sim a mensagem passada.
Isto me tocou a tal forma a ponto de construir este texto desta forma, e não de fazer uma análise agressiva e contundente. Desconstruir a atitude de Carlos Mendes por conta deste episódio seria tarefa muito, mas muito fácil. Até porque publicamente, ele está isolado. Ninguém, ainda que pense – ato de achar intimamente e em silencio – como ele, terá motivação suficiente para defender uma atitude desta natureza. É como discriminar negros e homossexuais. O preconceito existe. Mas está no íntimo de cada um, bem guardado.
Portanto, não há quem aponte um dedo a Carlos Mendes, ou a ninguém, e diga que ele merecia ou não uma resposta tão agressiva quanto a atitude que cometeu ao expulsar uma artista especializada em arte sacra de suas dependências. Não importa a culpa ou o merecimento dele. O que deve ser alvo de preocupação é a mensagem do ato em si. E eu vi isto na voz grave de Leordino. Carlos Mendes não agiu por religião, mas por política. Ele não brigou por Deus, porque Deus não lhe outorgou uma tarefa tão acima de sua capacidade limitada. Sua medida, ali, foi de política: a ideologia que defendo está acima da sua. E pronto.
Mas quando conversei com Leordino, percebi que ele conversava sobre fé e credo.
Quando entrei naquela igreja escondida, cuja missa é rezada na teatralidade do latim – e quando deixei de ir – eu estava respirando e buscando fé. Quando me dedico a escolher alguns homens, como os citados nominalmente acima, para ouvir o que eles têm a dizer, eu estou querendo que a fé deles me persiga e em mim faça morada. Política religiosa é a mais fácil de se fazer porque a desculpa e justificativa mais plausível todos têm: é em nome de Deus. Mas o assunto deste artigo não é este.
Eu já vi coisas se mexerem à minha frente de um lado para outro, já vi gente falando em línguas esquisitas, já vi pessoas serem curadas de doenças terminais. Eu já vi coisas absurdas serem invocadas e vi milagres acontecerem. Eu acho até que já senti Deus mexendo em duas ou três coisas na minha vida. Isto é fé, é credo e, em última análise, isto é o transcendental se manifestando sem que você faça idéia ou tenha controle do que esteja acontecendo.
Mas eu também já deixei uma sala de aula de terceiro grau, de um dos quatro cursos que freqüentei, porque a professora disse que o ateísmo era uma imbecilidade. Saí. Não sem antes citar metade das sandices geniais de Nietzsche sobre a religião e o Deus da “modernidade”. Mas isto não é fé. É política. Assim com a professora, como o filósofo alemão e como Carlos Mendes, há muitos jogando em cima de Deus e de Sua suposta vontade uma porção de atitudes estúpidas e agressivas. Mas isto, todos sabem, é política. Porque qualquer ser vivente é capaz de entender que a fé e o credo não estão em uma imagem, em um conto de madeira ou de marfim, em um livro mal traduzido, e às vezes maldosa e tendenciosamente mal interpretado.
Fé é o que percorre seus olhos quando vocês os fecha. Deus caminha pela sua vida quando você dorme e não O está importunando com desejos, anseios, movimentos calculados. Aos homens de batina, de gravata ou de avental, é que importa tanto a fé quanto a política do credo. A eles, corretamente, cabe decidir a política da religião. São eles que cuidam dos grandes grupos. A nós, cabe cuidarmo-nos de nós mesmos.

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Eu sigo o meu caminho, como muitos, entre a beleza da fé, do contato com o lógico, ilógico e o translógico, esta a pura manifestação do divino superior. Sigo também desviando do mau cheiro do oportunismo, da ignorância beligerante do fundamentalismo, dos que misturam política de dominação com o carinho do conforto da doutrina espiritual que se lhe faz parte.
Vou buscando conhecimento, em caminhos estreitos, ruas largas, em busca da paz e da tranqüilidade espiritual. Porque se em vida pouco me falta a presença dentro de mim de uma religião que me sirva de muletas, sei que haverá de haver um encontro futuro com a suprema criação que concebeu a vida e que dela tomará conta de volta. E quando este dia se apresentar, eu gostaria de estar mais sereno, mais seguro, mais sábio e menos confuso, para que, se houver uma luz, ela não me cegue, mas me guie. Não me queime, mas me aqueça. Não me confunda, me esclareça.
Mas enquanto não me repouso neste descanso de fé em vida, vou seguindo suportando o peso do meu corpo andando sobre os meus pés cansados, e outros pesos inerentes à humanidade. Vou desviando da estupidez e da intolerância. Esquivando-me, com rapidez mas tristeza, dos donos da verdade que, arrogantes que são, tornam-se ainda mais risíveis e patéticos ao serem desmascarados como seres cuja limitação intelectual chega a níveis tão irrisórios que se acham, eles mesmos, deuses soberanos de uma verdade que nem a ele, e nem a ninguém com absoluta certeza lhe foi revelada.
A maior tarefa do homem, de hoje e de sempre, é se suportar sem que precise para isto, arrancar a vida do outro para que tenha razão. Conviver com o que lhe incomoda é o que mais nos afeta. Desde, vejam só, Caim e Abel.
Abracemo-nos. Não em uma religião, não no seu, no meu ou no nenhum Deus. Mas, somente – em nome do respeito e da caridade que todas as seitas, do oriente ao ocidente, pregam – abracemo-nos.

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