domingo, 16 de maio de 2010

Dez anos esta noite

A vida não pede licença.
São dez anos e parece que eu consigo ainda lembrar o cheiro do monóxido de carbono que impregnava na sala de recepção do prédio gigante próximo à Praça da Bíblia. A pressa e velocidade dos carros e dos ônibus coletivos que entravam e saíam do terminal que ali funciona contrastavam diametralmente com o aspecto bucólico – e é este o termo perfeito – daquela sala de recepção. O caminho repleto de verde, com plantas, flores e obras de arte – para todos os gostos e conhecimentos – era uma espécie de oásis florestal no meio da imagem clichê da selva de pedra. Era o centro de Goiânia.
Na chegada ao Diário da Manhã através desta entrada, o choque de realidades sensoriais é muito grande. É como se mudasse o clima, o ambiente, a vida por completo em apenas alguns passos, num exercício de realidade virtual tão real quanto qualquer outra como as conhecemos. Os escapamentos dos ônibus assoprando poluição comburida com seus ruídos estrondosos de marchas sendo reduzidas ou aumentadas, o ronco dos motores possantes que impulsionam toneladas, de ferro e pessoas, – tudo aquilo ia sumindo a cada passo que se dava em direção à entrada daquele imóvel, como a última memória antes de adormecermos. A cada metro o verde ia crescendo em nossos olhos, o cheiro da poluição ia perdendo espaço e a vida triunfava solene, no som dos passarinhos nas árvores altas e no silêncio, repito, bucólico.
Mas todas estas impressões eu só fui ter tempos depois, quando entrar ali tornara-se uma tarefa diária, e muitas vezes apressada e árdua. Naquele dia, não. Na tarde daquele dia não havia tempo ou espaço mental para se ocupar da poesia do ambiente construído por Batista Custódio, e de sua mente brotado. Eu não fazia idéia, mas quando da minha primeira entrada em uma recepção de jornal diário, deu-se a minha entrada no jornalismo e na profissão de repórter de um dos maiores jornais diários do Centro Oeste.
Era minha primeira vez.
E, hoje, dia 12, faz 10 anos deste dia.
Eu e o também estudante do segundo ano da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia (Facomb) da Universidade Federal de Goiás, Victor Hugo Lopes, tomamos a decisão no início daquela semana de ir até o DM a fim de conseguir saber mais detalhes sobre o murmurinho de que estavam empregando estudantes por lá. Fizemos a combinação em silêncio nos corredores da faculdade, já que estudantes que ocupavam o lugar de jornalistas formados eram mal vistos pelos professores. Quando não perseguidos. Fizemos, assim mesmo, o nosso plano e por volta das 14 horas da sexta-feira, dia 12 de maio de 2000, entramos na tal recepção do Diário da Manhã em busca de um emprego, estágio, ou qualquer coisa que pudéssemos fazer dentro de um jornal.
Não sei, nunca soube e possivelmente não saberei – possivelmente porque não haverá explicação mais formal – porque ao informarmos da nossa intenção à recepcionista nós fomos encaminhados diretamente para a sala, a mesa e para os olhos inquiridores do dono do jornal. Não fomos recebidos por editores, outros jornalistas, funcionários do RH, nada disto. Encontramos e fomos entrevistados não somente pelo editor-geral, mas o sujeito que criou toda aquela estrutura e todas as demais coisas que fizeram com que seu nome fosse escrito na história da Comunicação de Goiás.
Em coisa de 15 minutos, dois estudantes recém começados no segundo ano de faculdade de Jornalismo deixaram o ônibus do Eixo Anhanguera para estar na sala de Batista Custódio, editor-geral e dono do Diário da Manhã.



“Quem é seu pai? E seu avô” – perguntou um sério senhor de bigodes brancos e de comportamento um tanto quanto curioso para o meu colega de empreita, Victor Hugo. Mais do que querer saber com quem estava falando, Custódio queria saber com a família de quem estava lidando. Pela conversa com ele, eu observava que a situação não parecia boa para mim, principalmente porque calhou do meu sócio na missão secreta de conseguir um emprego era neto de um juiz e fazendeiro bem conhecido do nosso entrevistador, da cidade de Jandaia.
Mais duas ou três perguntas amenas para ele, os olhos ágeis e misteriosos (curioso olhar) de Batista Custódio me descobriram.
“E você?”, me perguntou, economizando palavras. E eu assim o fiz, economizando as interrogações dele. “Sou filho de ninguém que o senhor conheça. Não tenho família em Goiás. Eu vim do Rio de Janeiro, mas moro em Anápolis”, expliquei já sem qualquer compromisso. A esperança findara-se quando vi que a expectativa da entrevista passava pelo campo de afinidades pessoais, ou regionais. O editor-geral do Diário da Manhã retomou o olhar a mim, deixando de lado algum tipo de leitura que fazia na mesa e, por sobre os óculos, disparou, sem rodeios: “Mas você não é daqueles comunistas de faculdade vindo do Rio de Janeiro, não, né?”.
“Não, não sou. E nem esses maconheiros de faculdade de jornalismo”, eu respondi. Mentalmente. Porque, na verdade, o que saiu foi apenas uma risada mofada, daquela bem sem intenção de sorrir, e a negativa, alegando que, não, eu não era comunista de faculdade. Em 2000, aliás, fora dos museus ideológicos dos guetos políticos, era bem difícil encontrar a tal espécie há muito em extinção: o tal comunista.
A mim, Batista não perguntou mais nada. Das muitas perguntas simpáticas que fez ao Victor Hugo, a mim, só sobrou esta. O velho jornalista, de corpo opulento e camisa meia manga, recolheu o braço direito e o colocou por baixo da mesa. Em seguida uma campainha estridente, daquelas que parecem um choque elétrico, tocou e a secretária, cuja tão curta distância de nós permitia que ela ouvisse um sussurro do chefe, veio até nós. A ordem de Batista: encaminharmo-nos para Ferreira Junior, então chefe de redação.
Nós, eu e Victor Hugo, não sabíamos. Mas estávamos contratados em nosso primeiro emprego como repórteres da Editoria de Cidades do Jornal Diário da Manhã. Para começar a trabalhar na segunda, 15 de maio de 2000.



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De lá para cá, muitas impressões ficaram. Muitos dissabores também. Porém pequenos, daqueles que o desgaste que o tempo promove nas coisas faz com que fiquem minúsculos, imperceptíveis. E com um ciclo de uma década de profissão como jornalista, prefiro eu sempre repetir “repórter”, um dos ensinamentos para a vida que mais ficam em mim é este: poucas são as infelicidades da vida as quais, de grandes no momento, mostram-se tolas e quase nada quando analisadas em perspectiva. Os percalços e dificuldades incomodam como uma topada no pé da mesa. A dor, de intensa no instante, some até mesmo da memória minutos depois.
Assim temos feito, assim Eu tenho feito: vivido eventuais dissabores, mas saboreado em minha memória cada instante de prazer destes 10 anos evoluindo em pautas, reportagens, descobertas, disputas, embates, erros, acertos e, certamente, em crescimento profissional. E pessoal, por causa da Causa profissional.
Eu poderia falar nesta reminiscência dos meses que fiquei com atraso de salário no Diário da Manhã. Certamente, muitos dos que por lá passaram, antes, comigo e depois de mim, se lembram disto e me cobrariam para narrar tal fato. Principalmente os professores da UFG que odiavam tanto o jornal. Insistiriam para que eu contasse estas passagens e não fazer parecer que o DM era um mar de rosas e de doces poesias. Não era. Nunca foi. E nem era para ser.
No entanto, eu prefiro contar e recobrar de momentos que até hoje carrego comigo. Se eu recebi meu salário com atraso por dois, três meses, hoje já não preciso mais pensar nisto, já não vivo sob o jugo do salário que falta, do dinheiro que eu conto para pagar o aluguel. Isto passou e, por mérito meu, isto passou. E em última análise, me perdoem os colegas da época: mas para quem fazia segundo ano de faculdade, tinha 22 anos e não sabia coisa alguma da profissão, ganhar o piso como jornalista, estar dentro de um diário, e emplacar matérias e reportagens na capa do jornal, já era um salário e tanto.

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Uma das lições, explicadas – claro – à base do esporro, que Batista Custódio me brindou aconteceu numa tarde quente de Goiânia em que ele me chamou à sua sala e reivindicou alguns pontos sobre determinada reportagem. Entre outras coisas, disse, relendo um material que eu tinha escrito, que eu escrevia muito “que”. “Seu texto tem muito “que”. Tudo tem que, que, que”, disse ele. Eu, distraído com o comentário, por inocência e desleixo, já que não tinha ouvido o que ele dissera, perguntei: “Que?” E ele, concordando com a minha distração: “É... ‘que’”.
Demorei alguns minutos, depois que deixei a sua sala, para entender a razão da reclamação dele: meu texto trazia muito repetidamente a palavra “que”. Na mesma conversa, ele cortou quase metade do texto, alegando ter muita embromação e me dizendo uma frase que desde então me acompanha:
“Uma reportagem precisa ter uma informação por linha. Uma informação por linha”.
Saí de sua sala com um ar pesado, de quem acaba de levar uma bronca do chefe, no caso, do patrão-maior. Eu ainda não sabia que era o jeito dele de partilhar conhecimento e que, ali, naquele instante, ele me ensinara a lição mais preciosa que tenho na vida: uma informação por linha.
E, hoje, uma década depois, eu sempre me faço a mesma pergunta toda vez que sento para escrever qualquer texto:
– Será que eu ainda repito mesmo muito “que”?
A vida não pede licença.


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E muito menos desculpa.
Que venham os próximos anos e décadas.

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