domingo, 9 de maio de 2010

O Brasil que Serra quer inventar para gerir


José Serra fez um governo positivo em São Paulo. Tem, de certa forma, uma identidade com o perfil médio do cidadão Estado. Sobretudo em relação a alguns setores que, se não são os mais volumosos, são – de fato – os mais influentes. O perfil de José Serra se encaixa com singela harmonia ao paulista. Não é difícil imaginar como seria um fracasso se, por um acaso, aquela mesma imagem fosse transferida para outro Estado. Ou alguém consegue pensar em Serra governando o Rio de Janeiro?
Serra é de poucos sorrisos e de humor sem graça. Falta leveza ao político, assim como falta à cidade de São Paulo e, ao todo, ao espartanismo do Estado. São Paulo não é um lugar para se rir, mas para produzir. É vital ao Brasil, é um Brasil dentro do Brasil, propriamente dito.
Acontece que, como nas palavras do ex-ministro e deputado federal, Ciro Gomes, José Serra é um cara chato. Não tem vícios, não gosta de beber, não torce por time algum (segundo ele, a manifestação do governador tucano pelo Palmeiras é pura questão de estética política do que paixão de fato). Serra é um paulista conservador, que até mesmo o espaço para o ócio é reservado na agenda. Esta é a definição de Ciro Gomes, um paulista de nascimento, que desde a primeira infância ganhou os contornos de sua personalidade moldados pela leveza e pela irreverência do nordeste brasileiro.
E, para qualquer nordestino, ou qualquer cidadão médio, (atenção, “médio”) do litoral carrega em si uma leveza que não se torna compatível com a sisudez de Serra. É um assunto questionável e subjetivo, mas é interessante perceber o quanto temas subjetivos, na prática, funcionam e se encaixam com naturalidade.
Agora, na pré-campanha das eleições, quando os candidatos estão em fase de aquecimento, surgem as evidências mais claras das deficiências, dos pensamentos, do perfil mais puro e sincero dos postulantes. Como numa preparação para uma maratona de atletismo, a fase de aquecimento e treino antes da disputa é aquela onde aparecem os pontos a serem melhorados, as lesões, e os pontos positivos de cada um.
E é justamente neste ponto que aparece o José Serra que Ciro Gomes apresentou. O chato. O Serra que não combina com o Brasil e com o brasileiro. O Serra que desliza em suas convicções, como a que afirma que os fumantes – que consomem tabaco e outras tantas substâncias nocivas – que mesmo adoecendo pelo vício continuam fumando “são pessoas sem Deus no coração”, é um tipo de cidadão que o Brasil ainda não aprendeu a cultivar. Serra que ser um cidadão e quer que o país seja o que ainda não é, o que não está pronto para ser e – em última análise – o que não se sabe se um dia vai querer ser. Serra quer um brasileiro de Esparta: direto, reto, perfeito numa perfeição chata de ser.
E por isto a crítica recorrente a Lula. Lula é o Brasil e o brasileiro. Enquanto os caciques do PSDB atacam os “modos” do presidente, o resto do país, em grande escalda, saúda o jeito de o presidente da República se referir às questões republicanas nacionais e a forma como se comunica com o brasileiro. Mais do que não admitir, a ‘intelligentsia’ do PSDB não consegue entender que é tudo uma questão de identidade.
Lula fala do Corinthians, seu time do coração e um dos mais populares do país. Faz comparações com futebol, conta piadas envolvendo cachaça, sua nada escondida predileção no mundo das bebidas. Lula fala “merda” no palanque. E para tudo isto, o alto comando dos tucanos tem uma resposta negativa, crítica e altamente moralista.
Mas, afinal, para quem discursam os tucanos? Certamente não é para o mesmo Brasil que Lula se dirige, quando aparece suado, com aparência desgastada, falando às multidões. O PSDB defende o Brasil engomado, o Brasil certinho, o Brasil que não existe e, novamente, sabe-se lá se alguém quer que ele exista.
Até mesmo o slogan da pré-campanha do PSDB com José Serra revela traços desta ambição, de transformar o país em um outro. “O Brasil pode mais”. Claro que pode e a prova disto é que não precisamos mudar de cara para sermos o que somos capazes de ser. Não precisamos que doutores de alto intelecto formal nos conduzam por somos, sim, uma nação a caminho do conhecimento e, mesmo assim, do empírico saber. Temos nossas formas de conhecimento, adquiridas de forma particular e é esta a nossa identidade, quer professores, estudiosos e tucanos queiram ou não. Nós somos um pouco Lula e estamos bastante distante de sermos um pouco, um pouquinho que seja, Serra.
E esta não é somente uma identidade brasileira, única. Antes que algum boçal reivindique que este artigo é uma defesa da sub-raça, do Zé Carioca que existe em nós, e ele existe. Mas a história recente dos Estados Unidos aponta para um caminho semelhante vivido nas eleições de Obama. Na mesma época da pré-campanha, o negro Barack Houssein Obama passou por uma mudança de imagem que o aproximou do americano médio. E assim como nós temos o pejorativo Zé Carioca, o americano médio tem o seu: Homer Simpson. O pai de família atabalhoado, confuso, preguiçoso, viciado em cerveja com os amigos, cheio de falhas de caráter e altamente dado à omissão é o retrato do americano e, daí, a identificação na relação de amor e ódio de Homer com as diversas alas sociais dos Estados Unidos.
No programa mais popular dos EUA, da apresentadora Oprah Winfrey, a Hebe negra da TV de lá, a hoje primeira-dama e toda chique e elegante Michele Obama fez revelações que, à primeira vista, soaram como música para os adversários republicanos. Ela disse que seu marido, quando chegava do trabalho, exalava um cheiro pouco agradável. Afirmou que quando ele tirava os sapatos, ninguém podia estar perto, dado o seu chulé. E, por fim, insinuou que Obama, à noite, era vítima de recorrentes... flatulências. E, por conseqüência, ela também era vítima do marido.
Em resumo: Obama tinha o popular cecê, tinha chulé e peidava. Sim, o presidente americano peida.
No entanto, a simples admissão disto parecia a condenação do pré-candidato democrata. O americano iria hostilizá-lo por isto. A turma de McCain soltou fogos, exultante. Mas o ‘inesperado’ para eles aconteceu. A popularidade de Obama cresceu assustadoramente e o americano criou identidade com o candidato negro, que trabalha, sua e fede, tem chulé e solta peidos à noite, antes de dormir.
Descobriram que Obama era um tipo de Homer. Descobriram que Obama pertence, sim, à humanidade, apesar de tudo.
A estratégia, muitíssimo bem calculada por parte dos marqueteiros, deu certo. A criação de um elo mediante a identificação foi firmado. No Brasil, Lula foi redefinido por Duda Mendonça que lhe pediu algo inédito,de tudo o que Lula ouvira como eterno candidato petista: seja quem você é, não mude. E o Brasil descobriu que Lula é brasileiro, meio Zé Carioca, meio Homer, meio como o nosso chefe, ou o nosso empregado. Lula não é um sujeito difícil de ser encontrado, mas sim é um cara como aquele que vemos aos montes pela rua. Lula é um pouco o nosso espelho.
Só que Serra não admite isso e não quer isto para ele, para os seus e nem para o Brasil. Serra quer inventar um Brasil particular, que ainda não existe, e aí sim, a partir deste novo país, ele quer ser o seu gestor, o seu avatar, a sua referência. Serra é o Lula de um Brasil que sequer foi inventado, sequer foi aventado pelos brasileiros. É a imagem chata de um Estado espartano, igualmente monótono e com ares de aristocracia separatista, baseado no lema: nós levamos o Brasil nas costas. E leva. São Paulo é, quem, carrega este país sob diversos aspectos. E acredita que, em nome disto, pode mandar no resto do país: nos seus modos, pensamentos e anseios. Alguém se lembra do cara que carrega o artilheiro campeão, depois da final decisiva?
José Serra, portanto, não está errado. Nem podem ser classificados erros e acertos neste processo. Mas ele é inadequado para o Brasil como nós o conhecemos hoje. Ele é parte integrante de uma elite importante e bastante marcante em seus traços e maneirismos e, por isto mesmo, é uma referência em São Paulo, a terra que mais o idolatra, que mais o entende e, por que não dizer?, que o inventou para o resto do mundo. Mas para o Brasil, aquela figura sem alegria, de sorriso frio e sem vitalidade, cujas imperfeições são apagadas como a celulite da modelo na capa de revista masculina, não serve como ponto de partida, não desperta paixões.
O Brasil de Serra é, ainda bem, uma utopia. E que Deus, aquele que não castiga “os fumantes ateus”, Oxalá, São Jorge e Xangô, Santa Bárbara e Iansã, e todas as divindades da diversidade do Brasil nos protejam para que este projeto não saia dos planos tucanos. Que fique lá, como um sonho emoldurado eternamente no conforto e no isolamento do Palácio dos Bandeirantes.

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