sexta-feira, 21 de maio de 2010

Permita-se

‘A felicidade é uma arma perigosa’, escreveu John Lennon numa música dos Beatles que, anos depois, Belchior fez questão de traduzir a frase e usá-la literalmente como ‘a felicidade é uma arma quente’. A felicidade como sentimento totalitário é composto de diversos preceitos. “Ninguém é feliz, somente se está feliz”, muito já se sabe disto com a própria experiência de vida. Mas, uma hora, e esta hora haverá de chegar, nós nos saberemos felizes ou não. Mais do que estarmos ou sentimos, em algum momento já mais próximo do ocaso da nossa existência, vamos saber o que construímos e avaliar se fomos ou não felizes. Aí, sim, torna-se totalitária a sensação de felicidade.
Um dos componentes da felicidade é viver o amor. Ou os amores. Porque os amores são tantos e infinitos na rede de sentimentos que despertam em cada um. O amor pelos filhos, na magnífica relação instintiva que o animal tem pelos seus descendentes, o amor pelos pais na mesma medida. Mas o grande amor em questão, o perigoso amor, é o que se escolhe. O amor que se opta por viver.
E este amor, ou estes amores que se sente, é tão perigoso quanto a felicidade. Amor mata e faz morrer. Quase tudo é amor. E há os tipos de amor que constroem e os tipos de amor que destroem. Neste processo de paixão e amor por outra pessoa, uma desconhecida da qual em poucos instantes decidimos viver com e por ela, os amores são diversos e para diversos fins. Mas uma coisa neste texto haverá de ficar claro: amores não são feitos somente para fazer bem.
Quem prega que o amor é um sentimento sagrado, ou que pregue qualquer preceito transcendental, religioso, que desperte o amor, que me desculpe, mas nunca sentiu-se suficientemente repleto, transbordante da mais pura manifestação do amor. Porque o amor nos agoniza. Nem todo amor faz bem, porque o amor não nasce com a missão de construir. Ele nasce com a missão de acontecer. O amor é. Pronto. Ele é. Ele não tem de servir para isto ou aquilo. Não tem que servir de palco para construir um matrimônio, filhos lindos, uma casa na praia e dois velhinhos abraçados no domingo a tarde no parque. O amor pode virar isto, mas não é somente para isto que ele nos serve.
Porque o amor é agressivo por natureza. É um redemoinho de sensações. O sentimento do amor, bem com outras sensações igualmente pontiagudas e lancinantes, invade o cérebro humano em uma série de descargas eletroquímicas, numa explicação mais cética. Mas também invade a alma e nos recria, inventa belezas que não existem, cheiros agradáveis, coincidências inimagináveis. O amor constrói em nós o imaginário mais delirante como sendo a realidade mais banal. É o amor. Quem haverá de negar a mágica do amor para fica na frieza das explicações científicas? Ora, todo mundo sabe que o céu de Ícaro tem mais graça que o de Galileu.
Mas mesmo assim, com a explicação que você quiser ter, o amor não é feito para fazer bem. Porque o amor não é feito para nada. Repito: o amor é.
E tentam explicar, esclarecer. E quanto mais o fazem, mais se confundem. O amor é a sensação cuja existência se justifica em si própria. Quem nunca viveu o amor destrutivo? Aquele cuja vontade é matar, morrer, gritar, arrancar do peito o sentimento que faz com que você sinta ódio, desejo, paixão, raiva, cólera e supremo amor pelo ser amado e desejado? Amores são brutos.
Tentam mostrar a doçura do amor. E tentam até mais: mostrar que amor somente vale a pena quando são construtivos. Amor só é amor quando conclui-se no altar.
Mentira.
Patética mentira.
Até porque nem sempre pessoas se casam com seus grandes amores.
E até porque, em última análise, quantos amores não são precisos começar e terminar para que haja um que construa algo para além do tempo que o amor está em vigência? É preciso errar muitas vezes para acertar, é fato. Mas não é assim como amor porque ele não precisa da sua ou da minha aprovação sobre o que é certo ou errado para existir. O amor é. Não venha você com idéias requintadas e prontas para enquadrar o amor. Porque ele vai escorrer das suas mãos solenemente.
É comum que confundamos amor com felicidade. O amor pode trazer felicidade e a própria felicidade não existirá sem a presença do amor. Mas amar não é estar feliz. Amar não é distribuir sorrisos e estar em paz. Acham que amor é paz. Não, não... não é. E não me venha com o papo de paixão. Uma coisa é paixão e outra é amor. Desafio quem amou alguém sem ter sentido o que chamam de paixão. Paixão é o nome que dão aos amores desfeitos. É uma desculpa. Ah, não era amor... era uma paixão. Não seja covarde com o amor. Admita que ele veio, passou, e foi. E foi ótimo.
É fundamental encarar a agressividade do amor para que, enfim, possamos vivê-lo em sua melhor forma. Porque o amor é quem nos escolhe e não o contrário. Quando acontece, a hora que você pensa em desistir, ele já lhe ganhou pelas pernas, braços, pela dura-máter. É preciso compreender que nem todo amor que lhe faz mal, que destrói é um péssimo sentimento que não pode ser chamado de amor. É amor, sim.
E somente com os amores brutos e perdidos, inconclusos e escondidos nas trincheiras do tempo é que podemos vislumbrar a sorte de nos encontrarmos com um amor perfeito e construtivo. Destes dos velhinhos no parque. Possivelmente todo mundo quer este amor. E quer passar por cima dos perigosos, nocivos, dos sentimentos rasteiros e instintivos. O que não se entende é que somente através dos amores que não dão certo é que aprendemos a viver mais e melhor o amor para quando novamente ele aparecer, sabermos aproveitá-lo e usá-lo da melhor forma.
O amor ensina.
E só se vive o que se ama.
Não é porque você sofre que passa a ser ruim aquela experiência amorosa. Não é porque destrói que deixa de ser o nobre amor. É preciso coragem para amar e mais coragem ainda para não desprezar o amor. Porque fugir é fácil demais. Correr é fácil demais. Não encarar a vida em todas as suas grandezas – e muitas as grandezas que a vida nos oferece – é mais fácil que vivenciá-las. Mas somente com coragem para viver o que é “certo” ou “errado” é que se torna possível, uma hora, ter a sorte de construir algo.
Para isto, uma palavra de ordem basta: permita-se.
Permita-se viver amores seguros, de mãos dadas no cinema e a companhia certa na hora da missa ou do culto. Permita a alegria dos passeios nas tardes ensolaradas. Mas também permita-se viver a intensidade do desejo, das incertezas, dos amores nocivos e incertos. Dos amores noturnos, de quando todos dormem e somente os lençóis testemunham todo o medo e desejo guardado somente para serem esconjurados naquele momento. Permita o risco. Permita o amor proibido. Permita o desejo.
Permita a vida que, de tão certa e exata, um dia acaba.
Permita-se viver a experiência que alguém, Deus ou a Mãe Natureza, ou algo que você creia com força, lhe permitiu viver. A humanidade ao longo dos séculos tem tentado se impor freios e amarras que não são da vida ou da existência, mas são das políticas conspiratórias para dominar o homem. O homem, indomável, cai nesta armadilha, entre o que pode e o que não pode. Tudo é possível e tudo é permitido desde que lhe agrade e lhe seja bom. Se você gosta, seja. Se você quer, toque.
O amor não pede permissão para acontecer em determinados lares. O amor, sabe-se, não escolhe idade, religião, atenção, o amor não escolhe nem mesmo sexo. E ainda tentam fazer com que ele seja um sentimento exclusivo de determinada frente específica. Há quem tente, de batina, de gravata ou de avental, ter exclusividade por sobre sensações e sentimentos inerentes do animal humano. Não têm.
Portanto: permita-se a tudo que lhe fizer bem de acordo com o seu julgamento. Porque os amores são os amores. E só. Sorte de quem os encontrar para toda a vida e não só para o deleite seguinte. Os amores são brutos e brutos são os homens uns com os outros. Amemos e vivamos com coragem até encontrarmos o equilíbrio das sensações e sentimentos. E então, lá naquele momento final, saberemos dizer o quanto a felicidade foi um momento em nossa vida ou uma constante ao longo da trajetória.
A vida é pra quem tem coragem.
Permita-se.

Um comentário:

Mercedes disse...

Texto de pisciano com o qual, eu - libriana- concordo integralmente.
O amor, quando é assim, brutal, avassalador, dura pra sempre na memória e ainda é capaz de ser sentido na carne, mesmo anos depois de acabado.

E tolo é aquele que acha que não deve vivê-lo.
Tenho dito.

M